Carta aos Pais
Testemunhamos hoje a persistência de um modelo de organização baseado na figura do homem – cis, hétero, branco, de classe média/alta – como centro dominante das relações sociais. Ao passo que ele se traduz em graves violências, as denúncias de mulheres, LGBTQI+ e outros grupos acirram o debate público. Por responsabilidade dos homens, pouco se reflete sobre os problemas subjetivos por trás da tentativa masculina de sujeição de outros modos de vida. Disso decorre a necessidade não só de crítica das masculinidades tradicionais, mas também de criação de um repertório saudável.
[além do herói] Jorge Lira

ao menino que fui
deram muitos nomes e peles,
foi preciso tempo para descobrir
com qual feitiço o chamaria
para perto de mim.

ao menino que fui
violaram o corpo e impediram seu choro
foi preciso enrijecer e marchar
antes de acender a fogueira
para descongelar a dança.

ao menino que fui
impuseram ritos impossíveis,
foi preciso correr e retrair
para rasgar estatutos,
tomar lugar e sustentar presença.

ao menino que fui
silenciaram a voz,
foi preciso reter pássaros
até não ter medo de abrir
jaulas e gaiolas

ao menino que fui
negaram-lhe o direito de sentir,
foi preciso refúgio na palavra
e uma cabeça muito grande
antes de descobrir o coração.

ao menino que fui
lanço meu olhar, dou-lhe o mel,
e um lugar seguro
à expressão de suas sensibilidades,
saúdo seu corpo, celebro seu canto.
tomo-o pelas mãos.
juntos, fazemos um carnaval.

o menino que eu fui vive
e requebra dentro do homem
que eu sou.
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ilustração: Hassan Santos